Feira de Inovação Social Digital em Roma: uma Experiência

Cupins comendo o miolo da principal viga de madeira que sustenta o telhado da varanda da minha casa. Um dia, sem esperar, o telhado desaba. Ou, uma experiência já vivida, a de cupins, silenciosamente, comendo o fundo do meu guarda-roupa. O resultado não precisa detalhar. Um belo dia, quando abro a porta do guarda-roupa, para vestir a camisa do meu time esportivo, muito bem guardada, embaixo de todas as outras, deparo-me com os “malditos” cupins que, além de terem já comido boa parte do fundo do guarda-roupa, comeram também parte da minha camisa preferida. 

Uso esses dois exemplos para introduzir os dois dias, 6 e 7 deste, que vivi na Digital Social Innovation (DSI) em Roma, como metáforas para falar dos milhares ou talvez milhões de “cupins” humanos (hackathons), inventando novos softwares, aplicativos, escondidos em garagens, quartos, fundos de empresas, moldando assim as instituições e, em muitos casos, mudando, disruptivamente, as formas de pensar, planejar e executar os recursos tecno-humanos na sociedade contemporânea. 

Embora o hackthon seja um neologismo da era digital para traduzir toda pessoa quebradora de paradigmas, inovadores, criadores (apache, todo software livre, milhares de aplicativos, etc.), a chegada de novas tecnologias ao longo da história sempre foi protagonizada por mentes disruptivas, hackers utópicos, movidos pelo desejo de descentralizar o capital humano, social e cultural.


Sem ler a história, jamais entenderemos as inovações do presente, muito menos, saberemos prever o futuro. Por isso, a importância da macro-história, para saber a evolução de quem éramos há 70 mil anos – quando a nossa espécie começou a usar, de forma mais ou menos estruturada, a comunicação oral – e quem somos hoje. Se partimos da Escola de Toronto, tendo McLuhan como referencial, observamos que, as grandes mudanças de mídia na história – a fala, a escrita, o alfabeto, o papel impresso e, agora, a introdução do digital – sempre foram criadoras de ninhos de cupim (hackthons), inovadoras, que, a princípio, incluem uma minoria e excluem os demais, desestruturando, desse modo, o modelo padrão organizacional e, consequentemente, criando novas estruturas, a partir da oxigenação de cérebros humanos, por receberem novos ventos, novas leituras, novas tecnologias, alterando, desse modo, as formas de perceber, criar e interpretar a realidade. 

Quando não quero dar a impressão de um “viajadão” na história, no lugar de observar as mudanças que as tecnologias provocaram na vida dos outros, busco ler, criticamente, a minha própria história. Simples assim. Cresci na zona rural, de forma saudável e feliz, sem eletricidade e sem ter o acesso aos meios de comunicação de massa. O único rádio da casa era usado apenas pelos meus pais, para ouvir, esporadicamente, programas que lhes interessavam. A bíblia e alguns versos de cordel amarelados na gaveta da prateleira eram os únicos livros que nós, filhos, tínhamos acesso. Quando começamos a frequentar a escola, entra mais uma cartilha em casa, a da escola, com a obrigação de devolvê-la no final do ano letivo. 

Faço essa digressão para jogar luzes aos questionamentos filosóficos introduzidos pelo professor de filosofia e ética da informação Luciano Floridi, no primeiro dia da DSI. Parafraseando Winston Churchill, Floridi disse: uma casa, antes de construí-la, você a molda, faz o seu desenho. Depois de construí-la, ela molda você. Nesse mesmo fio filosófico, Floridi poderia ter citado McLuhan, para as mídias; Marx, para a economia, Paulo Freire, para a educação, etc., ou seja, o “meio” ou os meios não determinam a nossa vida, mas a condicionam, abrem novas oportunidades de viver e de perceber a realidade.

Pensando assim, a mídia de massa chamada “rádio” me fez padre. Se até hoje, vivesse em um sítio, longe de eletricidade e meios de comunicação, a possibilidade de ser o que sou, hoje, era quase zero. Depois, o acesso à internet me fez estar aqui em Roma, estudando, não a ousada tecnologia dos aquedutos romanos, construídos séculos a.C., mas, a influência da revolução digital na construção da nossa aprendizagem, dos nossos valores, enfim, na formação da sociedade-rede emergente. Como reza a teologia judaico-cristã, Deus, na história, sempre usou diversos meios para chamar os seus: por meio de forças celestiais e naturais (anjos, vozes, vento, sol, pássaros, água); por meio de tecnologias milenares (escrita, pinturas, imagens, templos, objetos, etc.) e nos últimos tempos, Deus chama por meios de “ecos” humanos nas mídias eletrônicas e digitais (rádio, tevê, Twitter, Facebook, etc.).

A fala de Floridi foi, na minha percepção, a mais significativa, pelo fato de provocar uma leitura crítica da transformação digital em curso, com tudo o que ela significa, seus riscos e oportunidades, seu lado includente e excludente. Se se trata de uma transformação feita por humanos, através do digital, naturalmente, para ser coerente com o que somos, essa transformação potencia bons e maus, anjos e demônios, pessoas honestas e desonestas, solidárias e egoístas. 

O digital já banha a maior parte do planeta terra, e com ele, novas oportunidades inimagináveis surgem. Vivemos na infosphera, na realidade “onlife”. Se antes vivíamos ao redor de computador, na hiper-história (estamos entrando) vivemos imersos dentro do digital. Os questionamentos levantados foram: que valores serão priorizados no mundo onlife? O que fazer e como cada pessoa usará o seu poder digital? Qual o potencial da internet nos próximos 100 anos? Dependerá da decisão pessoal e governamental de cada setor ou país. 

Aqui, Floridi cita um diamante de Shakespeare: “se você puder olhar para as sementes do tempo, e falar que grãos irão crescer e quais não irão (ou não deveriam crescer), compartilhe, então, comigo”. Ou seja, ninguém sabe o que poderá acontecer nas próximas gerações, o futuro das inovações tecnológicas dependerá do destino que cada pessoa e governo farão com ele. “O real desafio não é a inovação tecnológica, mas a governança do digital” (Floridi, 2018).

O filósofo da informação conclui apresentando as duas faces das inovações tecnológicas na sociedade. De um lado, fomenta uma cidadania participativa, empodera o indivíduo, amplia as nossas percepções da realidade, alarga as relações humanas, a vigilância, etc. Do outro lado, aumenta os riscos da alienação (distração), da manipulação, do isolamento, do tecno-utopismo, entre outros. Para evitar cair no abismo presente da realidade tecno-humana, aconselha Floridi, devemos: pensar mais profundo (think deeper); projetar melhor (design better) e estar sempre atento (be mindful).


Hackthon, crowdsourcing P2P e descentralização (blockchain)


Após a reflexão do filósofo, surpreendeu-me o protagonismo da meninada na criação de aplicativos, softwares, programas, em síntese, inovações digitais com o objetivo de oferecer mais qualidade de vida, mais participação aos cidadãos e democratização do capital humano digital. Quase todos são iniciativas de jovens, que, nos seus momentos livres, geralmente, nas férias ou finais de semana, reúnem-se para criar, para pensar tecnologias que atendam demandas latentes da sociedade. Foram dois dias de apresentação de startups, experiências de êxitos e fracassos, de voluntariado, ou seja, há muita gente movida pelo desejo de partilhar seus dons, trabalhando silenciosamente em equipe na galáxia da rede, com o objetivo de conectar tecnologias para a transformação da realidade social.

O xenofobismo é um dos maiores problemas na Europa, mas é também um entre tantos outros serviços que os hackathons na europa desenvolvem, voluntariamente, sobretudo, aos imigrantes ilegais, através do services4migrants e outras iniciativas. Além do serviço aos imigrantes, várias outras experiências foram expostas na feira DSI:

◦ My Society – www.mysociety.org
◦ OpenMaker – www.openmaker.eu
◦ Savingfood – www.savingfood.eu
◦ DECODE – www.decodeproject.eu
◦ D-CENT – www.dcentproject.eu
◦ Open4citizens – www.open4citizens.eu
◦ Dezenas de outros apresentados

A obra prima para inventar aplicativos, software, alternativas para transformar a realidade, já está disponível na rede: os dados, ou seja, todo o conteúdo produzido pelos eu-mídias e grupos. Como diz Harari, o Big Data é o que há de mais valioso na rede. O passo seguinte é: como transformá-lo em valores para a transformação da sociedade em geral, e não apenas de uma pequena parcela de privilegiados que habita no ambiente digital. Os dados, em síntese, são nossas relações nas mídias sociais, nossas emoções, nossas fotos, textos, áudios, compras, comportamentos, participação política, religiosa, etc.

Portanto, o grande desafio é descentralizar o Big Data (nossos dados), que, atualmente, está a serviço de grandes corporações: Google, Facebook, Amazon e outras. Elas têm o poder de manipular, vigiar e fazer qualquer coisa com o que temos de mais precioso na rede: nosso rastro, relações, dados, reputação. Por isso, o tema da ética é urgente, ou seja, o respeito e o cuidado pela privacy e pela dignidade da pessoa devem estar acima de qualquer interesse pessoal ou corporativo.

O revolucionário Blockchain foi tema de debate na ultima parte da feira do DSI. A conversa foi introduzida com perguntas como: podemos construir ‪uma economia colaborativa com plataformas que sejam descentralizadas, democráticas e distribuidoras de lucros? Por que é tão importante a descentralização? Fabrizio Sestini – um expert de inovação social digital da Comissão Europeia DG Connect – resumiu dizendo que a passagem da centralização para a descentralização provocaria a mudança de: 

- uma escolha para múltiplas escolhas; 
- do monopólio para a neutralidade da rede; 
- da soluções do proprietário para o open source; 
- do cloud (nuvens) para redes de comunidades; 
- do monitoramento à privacy; 
- da Inteligência Artificial à Inteligência Coletiva; 
- do fluxo assimétrico dos dados à governança descentralizada dos dados. 

A conclusão da feira DSI deu-se com a discussão entorno dos cinco desafios do manifesto da Inovação Social Digital: abertura e transparência; democracia e descentralização; experimento e adoção; habilidades digitais e multi-disciplinaridade e sustentabilidade.

Enfim, diante da bela experiência vivida na #DSIfair2018, concluo recordando um recente “tweet” do pai do www, Tim Berners Lee, aquele que sonhou e ainda sonha com a democratização em 360 graus da internet: “eu ainda sou um otimista, mas um otimista em pé no topo da colina com uma tempestade terrível no meu rosto, segurando-me em uma cerca”. Ou seja, em tempos sombrios de monopólio, de concentração, de mercantilização de todos os nossos dados, não basta ser apenas um otimista digital, é preciso, antes de tudo, ser um otimista racional, crítico e reflexivo. 

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