Venha Ver - uma história enigmática


Certa vez, disseram-me que o Venha Ver, minha cidade natal, era filha de duas famílias: uma holandesa e outra judia. Depois, mais adiante, fontes novas falam que o Venha Ver seria descendente somente de judeus. São histórias recentes, se comparadas com a fundação do povoado. 


Lembro que, quando eu  estudava na minha saudosa escola, Pedro Trajano Torres, não recordo que os professores tenham falado a respeito dessas versões históricas. A primeira vez que li sobre os judeus no Venha Ver, foi no final da década de 90. Naquela época, em que minhas habilidades críticas ainda não eram tão aguçadas, aceitei passivamente, sem muito questionamento. Hoje, invés, não sei por quais motivos, não consigo explicar serenamente – para quem me pergunta sobre a origem da minha cidade – essa história de que sou descendente de judeus e holandeses. Creio que tenho minhas razões para não aceitar como assunto encerrado tais dados históricos.

Antes de tudo, porém, gostaria de dizer que minhas fontes pra falar sobre a origem da nossa cidade são muito escassas. Daí, talvez, surge o porquê da ausência de credibilidade nos dados sobre o Venha Ver. Basicamente, bebi apenas de duas: o livro “A vida em clave de dó”, escrita pela micaelense Zenaide de Almeida, publicado em 1979 e a pesquisa do rabino Jacques Cukierdorn, que há alguns anos, defendeu uma tese de mestrado nos Estados Unidos, na qual, entre outros temas, estudou a presença dos judeus em terras potiguares.

Para saber mais sobre Cukierdorn, recorri ao Google e vi que ele é, de fato, um rabino de referência no campo do estudo sobre a religião judaica e tem uma presença muita ativa no YouTube, com tutoriais, onde explica, com fundamentações bíblicas, a espiritualidade e a prática litúrgica da religião judaica.

Questionarei, então, algumas das hipóteses da tese do rabino a fim de provocar novas interpretações e possíveis novas descobertas sobre a enigmática história da nossa querida Venha Ver:

Diz o rabino que um dos motivos pelos quais os judeus fugiram para o Venha Ver está ligado ao fato de ser um lugar isolado, que faz fronteira com dois estados: Ceará e Paraíba. Olhando no retrovisor da história, a forte perseguição judaica pelo cristianismo, ameaçada pela santa inquisição, deu-se entre os séculos 15 e 16, período em que, milhares de judeus se espalharam por muitos países, entre eles, Brasil. 


Naquele período, como também, séculos depois, a geografia do nosso povoado era considerada, na minha imaginação, igual a muitas outras localidades, rodeadas de montanhas, ou seja, estradas (não havia) e limites estaduais não eram fatores determinantes. Se usamos esse argumento, poderíamos dizer também que Luis Gomes, Mundo Novo, Coronel João Pessoa e tantas outras regiões são cercadas por montanhas, etc.

Uma forte hipótese do rabino estaria relacionada aos sobrenomes da população do Venha Ver. Segundo o rabino, os mais comuns são: Carvalho, Moreira, Nogueira, Oliveira, Pinheiro. Até onde sei, não é verdade. Há alguns deles no povoado, porém, o forte desses sobrenomes está, no meu entender, em Coronel João Pessoa, São Miguel, Doutor Severiano e municípios vizinhos. Sendo assim, pergunto: seriam todos esses municípios também descendentes de judeus?

O nome Venha Ver, segundo a hipótese do rabino,  é uma fusão do verbo “vir” com o termo hebraico “chaver”. Chaver, para os hebreus, significa amigo, camarada. Por exemplo, quando saudamos um amigo, dizemos, “oi amigo!”. Os hebreus costumam saudar dizendo “Shalom chaver!”. Porém, o que não me convence aqui é o fato de dizer que o “chaver”, era, antigamente, pronunciado por  “vem raver”, que portava um sonido semelhante ao atual nome “Venha Ver”. A pronúncia fonética de “Venha Ver” e “Vem Chaver”, na minha opinião, são totalmente diferentes.

Outra hipótese que sustenta a tese do rabino é ligada aos defuntos vestidos com mortalhas brancas. Minha dúvida: são somente os defuntos do Venha Ver  sepultados com mortalhas brancas? Os cadáveres de São Miguel, Icó, Mundo Novo e outros, por acaso, não vestem mortalhas brancas?

Outra prática enfatizada pelo rabino: no Venha Ver, o povo mata o boi ou qualquer animal dependurados em árvores para que o sangue seja escorrido. Isso reflete traços da cultura judaica, pois, para eles, o sangue é considerado um alimento impuro. 


Aqui, surgem, mais uma vez, minhas velhas dúvidas com relação às motivações de tal ação. Em um povoado, onde não há um matadouro público, não havia pavimentação, nem água enganada, não seria mais prático e higiênico, invés de tratar o animal no barro (lama), dependurá-lo em um pé de cajarana ou castanhola? Quanto ao sangue de animais, pergunto-me se a nossa gente do “Padre Cosme” não havia o costume de fazer a saborosa cabidela (o sangue da galinha misturado com variedades de temperos, geralmente, o prato mais cobiçado da festa).  O rabino para justificar que os venha-verenses não bebiam o sangue, afirma que, após, cortar o animal, a carne era salgada e colocada no sol pra secar. Pensemos: numa lugar sem energia, portanto, sem geladeira, qual seria outro modo pra preservar a carne por alguns dias?

A prática de colocar seixos sobro os túmulos no povoado do Venha Ver também pode estar ligado à ascendência judaica, diz o rabino. Pensemos um pouco. São Miguel não faz o mesmo, Mundo Novo não faz o mesmo, os cemitérios dos sítios, espalhados pelo Brasil inteiro não fazem algo semelhante. Digo isso porque, com exceção dos túmulos de mármores nas cidades maiores, a prática de colocar flores em jarros sobre os túmulos é algo muito comum no nosso nordeste.

Há muitas outras hipóteses que, na minha opinião, podem e devem ser questionadas a fim de clarear melhor a real origem da nossa gente: cruzes nas portas, saquinhos de areia colocados nos batentes das portas e por aí vai.

Questionar não quer dizer negar tais versões históricas. É fato, todos sabemos, que o Brasil é multicultural. É fato histórico também que, no RN, os holandeses e judeus tiveram presença marcante. Depois, o próprio cristianismo, divididos por religiões diversas, é descendente do judaísmo. Portanto, hipóteses que nos levam a sermos descendentes de holandeses, judeus, africanos são discutíveis.

Todavia, não creio, sem questionamentos, nas hipóteses analisadas por um estudante, que vive longe da nossa cultura, sobre a nossa querida Venha Ver. Primeiro porque a nossa cidade – embora tenha se tornado em distrito apenas em 12 de agosto de 1963, e em povoado autônomo em 26 de junho de 1992 – ela foi fundada no início do século XIX, precisamente, em 1811. Temos, portanto, mais de 200 anos de existência.

Pesquisar nossas raízes, a história dos nossos descendentes, fortalece nossa identidade, nossos valores, nossa cultura. Depois, a história quando cai do alto, interpretada por pesquisadores de outro planeta, não deve, no meu entender, ser aceita, como dogma de fé, pelos filhos da própria terra. São, sem dúvida, dados importantes, mas, não deveriam ser aceitos como os únicos que portam o retrato perfeito do passado histórico da nossa gente. 

Daí, é mais do que justo continuar pesquisando, estudando, ouvindo os mais idosos, lendo os rabiscos corroídos pelas traças no fundo das malas de madeira dos nossos bisavós, porque afinal, a história somos nós.

Comentários

  1. Raros os que se reportam à sua terra, às suas raízes, sem perder o espírito crítico e a lucidez. Belo ensaio, padre Talvacy! Embora não me conheça, aprendi a admirá-lo através do olhar respeitoso e carinhoso de seu irmão Edilson, colega e amigo de todas as horas que, com sua fascinante história de vida, instigante personalidade, integridade, inteligência, determinação e, sobretudo, competência, tem transformado nosso trabalho no TCE/PI e, me atrevo a dizer, nossas vidas. Confesso que li e me emocionei com o texto que escreveu por ocasião do seu aniversário em 2009, ratificando a máxima de inspiração pessoniana de que o homem é do tamanho do seu sonho...
    Quanto à Venha Ver, com certeza algum dia irei conhecê-la. Independente da sua origem, só pode ser muito especial por ser o berço de pessoas tão notáveis.
    Um grande abraço, Lucine.

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  2. Muito obrigado pelo comento e um obrigado maior por apreciar e querer bem ao meu amado irmão Edilson. Falar de quem a gente ama é perigoso porque corremos o risco de ver somente beleza, valores, virtudes. Edilson é, antes de tudo, um rapaz de um humanismo extremo e de uma beleza interior sem limites, dedicado e esforçado em tudo o que faz. Sua simplicidade e humildade são virtudes que me invejam. Inveja mais ainda seu amor paternal pela nossa família, especialmente, pelos nossos pais. Graças a Deus, eu e toda a minha família somos muito orgulhosos por tê-lo em nossa companhia.

    Quanto ao Venha-Ver, estou muito curioso e desejoso em estudar a fundo as raízes daquela terra. Uma cidade sem raízes históricas sólidas afeta maleficamente sua própria identidade e sua própria cultura, e, portanto, agride a todos os venha-verenses. Até agora, parece que tudo caiu do céu, não foi o povo do lugar que descreveu o que sabemos, mas, estudos feitos por pessoas de longe. Da parte do povo, apenas fizeram entrevistas pra confirmar resultados já previstos. Por isso, reescrever e redescobrir nossa raíz, a origem dos nossos pais, é urgente e necessário. Depois, é um tema que me apaixona. Melhor ainda.

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  3. Padre Talvacy satisfação saber que um filho de Venha-Ver vive na minha amada terra Mossoro e presta um valioso serviço a comunidade.
    Bem, li seu texto e gostei bastante, mas fiquei tentado a comentar um pouco.
    A respeito de o senhor quando estudou em sua escola nunca ter ouvido falar de sua cidade ter descendentes de judeus deve-se ao fato de o Rio Grande do Norte ter poucos estudos sobre o tema. Eu mesmo em minha vida escolar nunca fui advertido sobre esses costumes serem de origem judaica descobri estudando Historia e Antropologia sozinho. Então ,realmente a informação sobre cristãos-novos no RN e raríssima e ainda esta para ser pesquisada.
    Em se tratando de localização das comunidades, os marranos (cristãos-novos) após a expulsão dos holandeses (1654) do Nordeste e consequente proibição do culto judaico alguns marranos saíram de Pernambuco, estes formariam uma comunidade em Nova Amsterdan(hoje Nova York) e outros se embrenharam pelo sertão buscando lugares isolados onde pudessem praticar o judaísmo pelo menos de forma oculta (cripto-judaísmo).(Os Marranos Brasileiros, Isaac Izecksohn 1967).Partindo desse fato qualquer lugar distante dos centros urbanos era favoravel ao desenvolvimento pelo menos da religiosidade marrana e o que ocorreu com o Serido, Apodi, no Ceara, na Paraiba, enfim em muitos lugares do Nordeste. O que chama atençao em Venha-Ver e como alguns costumes marranos são bem preservados.
    O senhor falou sobre mortalhas brancas questionou sobre elas serem comuns em sua região, pois bem, existem relatos delas em Patu, Mossoro, Apodi, Almino Afonso, Rafael Godeiro, e geralmente nestes municípios algumas famílias e que mantém este costume. Isso somente demonstra como e intenso o fenómeno marrano RN. Outro costume bem interessante e difundido em quase todas as regiões do Estado e o habito de colocar seixos em túmulos e em cruzes de estradas, esta e uma pratica típica judaica que pode ser bem observada no filme "A Lista de Schindler". Um bom documentário sobre este tema e "A Estrela Oculta do Sertão" e um bom livro sobre os cristãos novos e o livro do professor mossoroense Marcos Antonio Filgueira "Os Judeus Foram Nossos Avós".
    Uma ressalva, o rabino Jacques Cukiercorn apesar de ter nome de gringo e brasileiro.

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