A cultura da participação na era digital


Éramos culturalmente alimentados por uma visão de mundo filtrado/criado pela mídia de massa. Essa, por sua vez, era/é controlada pelas corporações de comunicação pertencentes aos detentores dos poderes políticos e econômicos da sociedade. Estando, portanto, os meios de comunicação - jornais, livros, tv, radio - sob o controlo exclusivo de uma "casta" de eleitos, – as pessoas, passivamente, consumiam o conteúdo que tinham acesso.

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seja publicando fotos engraçadas de cachorros, seja editando na Wikipédia ou escrevendo no blog. A interação dilui lentamente o monopólio excludente do poder que controla os meios de comunicação social, inaugurando assim, um novo mundo mais humano e cooperativo.

Dentro dessa atmosfera e consciente das transformações revolucionárias que a Internet está provocando na área da comunicação, e não somente nela, Clay Shirky escreve mais um livro"Surplus Cognitive”(Excedente Cognitivo) partindo de uma pergunta de fundo: que coisa fazia o homem com o tempo livre durante todo o século XX? A resposta é banal e, talvez, pra muitos, violenta: assistia à tv. O pensamento de Shirky, americano, escritor, professor, esperto em new media, é que somente hoje, mídias flexíveis, econômicos e inclusivos nos permitem fazer atividades de todo tipo que um tempo era impensável fazer.

No mundo da "mídia tradicional" éramos como crianças, sentados silenciosamente na roda para consumir qualquer coisa que os grandes do alto produziam. Aquela realidade cedeu lugar ao mundo onde a maior parte das formas de comunicação, pública e privada, está a disposição de todos, de qualquer forma. A expressão "excedente cognitivo" se refere tanto à excedência de tempo livre que caracteriza as sociedades avançadas do pós-guerra, quanto ao fato que tal excedência produziu um tipo de plus-valor (mais-valor) cultural, que, graças às as novas mídias é possível, de modo horizontal, construir.

O tempo livre como vantagem social, como ocasião para gerar projetos coletivos, grandes e pequenos, como os minutos à disposição para interagir com os demais internautas.
As novas mídias não produzem isolamento social. Ao contrário. Pesquisas revelam que elas promovem novas formas de criatividade e de coparticipação. Esta é a tese de fundo do excedente cognitivo. A tentativa de Shirky é aquela de guardar a outra face da medalha: uma rede que coloca em primeiro lugar a pessoa e não a tecnologia, que gera combinação cívica e não isolamento individualista; economia da colaboração e não coletivismo reducionista.

São tantos os exemplos que Shirky apresenta. Das coisas mais elementares como Wikipédia, blog, grupos de fãs musicistas, mas também coisas mais sérias como o protesto político de 2003 de Cheonggyecheon Park em Seul, um tipo de solidariedade midiática. Mais recentes, o mundo testemunhou a influência inquestionável das redes sociais na "primavera árabe" e na manifestação juvenil espanhola gritando por uma nova democracia.

(…) Mesmo se muito daquilo que os jovens fazem online pode parecer banal, o que estão fazendo é, no fundo, desenvolvendo a capacidade de se conectar, de comunicar e, em definitivo, de mobilizar-se. Do Pokémon aos grandes protestos políticos. É indiscutível, portanto, a força e ação social que as redes - pessoas conectadas - conseguem gerar.

Defende Shirky que as novas mídias digitais são instrumentos fundamentais para coordenar o contato com as pessoas e atividades por elas idealizadas. "Quando as mídias sociais se encontram em novas mãos, elas assumem novas características".

Shirky também é consciente de que o "excedente cognitivo" não é em absoluto um valor universal, nem tampouco eterno. O verdadeiro plus-valor cultural, segundo Shirky, é representado da possibilidade que cada um tem de produzir conteúdos e partilhá-los, e/ou de participar de projetos de cunho público ou cívico.

Escreve Shirky: "Criar valor público ou cívico requer algo mais que simplesmente postar fotos divertidas. O valor cívico exige empenho e fatiga por parte dos participantes. (…). Dado que seguimos quase sempre a satisfação individual, é raro que grupos voltados aos valores públicos e cívicos sejam permanentes.
Para obter aquilo que necessitamos, e não somente aquilo que nos dá prazer, são fundamentais trabalhos feitos em grupos. O desafio agora é saber como criar os grupos e mantê-los coesos em torno de uma meta comum. Para cada serviço que alguém deseja usufruir do excedente cognitivo, em grande escala, há diante de si estas alternativas: ter um "grande" grupo de utentes; ter um "grupo" ativo de utentes; e ter um grupo de utentes todos "interessados" à mesma coisa. Ter todas as três opções ao mesmo tempo parece uma coisa quase impossível. Talvez duas, sim.

A partir deste quadro, surgem algumas interrogações - provocadas por alguns autores - que questionam diretamente a visão de Shiky. Verdadeiramente, estão as mídias sociais em "novas mãos", as nossas mãos, ou os poderes que se escondem atrás dos meios que usamos são ainda mais fortes, grandes e hábeis? Podemos esperar que a blogosfera se torne uma esfera pública racional e melhor que a atual? e ainda: se muitas das tecnologias colocadas a disposição dos internautas são tecnologias de filtro para selecionar informações e dados relevantes para quem lê, os conteúdos não desejáveis - impostos pelos interesses do Google, Facebook, etc. - não os distanciariam sempre mais daquilo que procura?

Shirky busca responder fazendo uma pergunta crucial. O que faremos do excedente cognitivo? Somos capazes de andar, além da partilha pessoal e comunitária, para dedicar mais tempo a projetos públicos e de valores cívicos?

Apesar das sombras que se intensificam sobre a Rede, a visão evolucionista e positiva de Shirky é, portanto, necessária, sobretudo em um período em que se tende a colocar o determinismo tecnológico acima da centralidade da pessoa humana.

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